Indecente. Parcial. Funesto. Esses são alguns adjetivos que podem ser usados para avaliar o medíocre relatório elaborado pela comissão temporária especial para acompanhar a situação dos Yanomami e a saída dos garimpeiros. Na última terça feira foi publicada a versão do relatório final elaborado pelo senador da república Hiran Gonçalves (PP/RR).
A consultoria do Senado Federal apresentou um voto em separado buscando salvar os trabalhos da comissão, no mesmo link apresentado acima você pode acessar essa proposta. No entanto me proponho hoje a olhar o texto construído pelo relator, político de Roraima, que possuía outros 2 colegas, também das terras de Makunai’mî, o Senador Chico Rodrigues (PSB/RR) e Mecias de Jesus (Republicano/RR).
A elite política e empresarial de Roraima sempre utilizou um discurso segregador contra os povos indígenas, apartando-os do contexto de formação da sociedade. Termo como a sociedade de Roraima sempre foi utilizado para tentar demonstrar uma coesão das pessoas não indígenas contra a demarcação de terras.
O relatório do senador Hiran Gonçalves retoma essa perspectiva segregacionista ao afirmar na página 22 “O povo do Estado não deseja nada além de convívio harmônico com os indígenas, mas tem o seu desenvolvimento encurralado pelas restrições existentes, pelas fragilidades de infraestrutura e pela indisponibilidade de terras. Roraimenses, amazônidas e brasileiros, de todas as raças e cores, têm o direito de trabalhar e precisam de oportunidades” (2013. P.228).
Essa narrativa demonstra claramente o papel dilacerante de um povo que estabelece o relatório. O não reconhecimento de que os povos indígenas compõe o povo de Roraima, com direitos estabelecidos pela constituição, caracteriza o preconceito que circunda o incentivo a crimes, como o garimpo ilegal na TI Yanomami, protagonizados nos púlpitos, nas eleições e nos corredores da administração por muitos políticos e empresários.
A comissão que possui o escopo de acompanhar a situação do povo Yanomami promove o ódio como ferramenta retórica, por meio de excluir os indígenas da composição societária de Roraima. Preconizando uma disputa irreal entre a posse da terra, como se a garantia do direito ao território indígena não integrasse o processo de garantias fundamentais. Para o relator a posse privada da terra é o único objetivo da política e da economia roraimense.
Partindo desta concepção apresentada no texto é fácil de identificar a retórica construída no documento que chega a apontar os indígenas, sem base de sustentação alguma, como responsáveis por uma chacina, ocorrida na região de Uxiú, localizada na TI Yanomami. Silenciando o documento em relação aos ataques cometidos por garimpeiros e que são investigados pela polícia federal, com forte indício da atuação de organizações criminosas na região. Lamentável a inversão dos fatos, buscando transformar os indígenas que tiveram seu território invadido em criminosos, isso é feito por uma ilação sem amparo algum.
No documento o relator também aponta de forma genérica que os indígenas possuem uma convivência secular com os garimpeiros. O senador Mecias de Jesus (Republicano/RR) afirma, em um dos depoimentos, que os indígenas necessitam dos garimpeiros para comerem. Essas duas assertivas constituem-se em interpretações da realidade sobre o olhar colonizador da ocupação do espaço, bem como da generalização como ferramenta de consolidação de uma estratégia de usurpação de direitos.
Ao afirmar tais relações deveria o senador apontar quais são as áreas em que a comissão identificou esses fatos. Isso ocorre em Surucucus ou em Auaris? Regiões visitadas pelos parlamentares. Ou apenas reproduzem discursos e vídeos idealizados por garimpeiros? Os quais possuem vastas postagens de encontros com os parlamentares de Roraima integrantes da comissão.
Os povos que residem na TI Yanomami são reconhecidos como seminômades. Necessitam da caça, da coleta, da pesca e de roças de pequeno porte, especialmente de tubérculos, para sua dieta alimentar. Como manter essa dieta com máquinas trabalhando 24h por dia? Como pescar com a criminosa afetação das margens dos rios que modificam o ciclo dos pescados? Neste contexto da invasão patrocinada de garimpeiros ao território Yanomami e do estabelecimento de grotas de exploração nas cercanias das comunidades indígenas é imperioso que estes indígenas passem a ser cooptados para ter garantido seu direito básico de comer.
No entanto, essa relação que se estabelece é fruto da invasão, não de um desejo dos indígenas como afirma Mecias de Jesus. Incompreensível são os parlamentares da comissão não terem participado de nenhum encontro com os indígenas. Nós temos 10 entidades representativas dos Yanomami, em nenhum momento essas organizações foram escutadas coletivamente para que suas cosmovisões da realidade do criminoso garimpo que se estruturou com a inércia do governo federal e estadual pudessem ser avaliadas. No intuito de apurar os reais impactos humanitários sobre o território que promoveu a morte de indígenas e a piora das condições de segurança alimentar de crianças e idosos, parcelas mais vulneráveis na cultura Yanomami.
No bojo da peça defensora da espoliação mineradora em terras indígenas, defesa contida nas conclusões do relatório, o relator utiliza o documento para fazer uma vasta defesa da produção agropecuária de grãos e gado, apresentando Roraima como a última fronteira agrícola. Essa realidade é completamente destoante do processo organizacional Yanomami.
Vivemos transformações entre o povo Yanomami? Sim. Principalmente em virtude de cada vez mais promovermos uma dependência econômica de indígenas, seja pela profissionalização, necessária na saúde e educação, ou pela inserção destes indígenas em programas sociais, a exemplo do programa bolsa família. Essa realidade mudará hábitos culturais, entre os quais posso destacar o nomadismo das comunidades, situação que exigirá cada vez mais o início de um processo de cultivo de alimentos e criação de animais.
No tocante a saúde pública o relatório demonstra claramente que os recursos aplicados em 2022, na TI Yanomami, foram menores que os recursos aplicados em 2013, uma redução efetiva de R$ 20 milhões. No entanto, o texto apresentado não disponibilizou uma linha apenas para falar das unidades básicas de saúde fechadas ou queimadas pelos garimpeiros. Situação que impôs desassistência de várias comunidades, expondo os indígenas a risco de morte.
Outro problema inerente à situação da saúde protagonizada pelo garimpo ilegal consiste no receio de deslocamento dos profissionais de saúde do polo base às comunidades no meio da floresta. As visitas das equipes de saúde em uma região conflagrada por garimpeiros armados e organizações criminosas ampliaram o processo de desassistência, somado lógico as indicações de Mecias de Jesus a condução do DSEI-Yanomami. O relatório silencia sobre esses fatos.
Os Yanomami enfrentam uma crise humanitária devido à completa desassistência do Estado brasileiro, promovida por um governo federal capitaneado por Bolsonaro e suas políticas anti-indígenas, estrutura essa apoiada abertamente pelo relator da comissão. Em abril de 2018, durante a campanha eleitoral, Bolsonaro ao lado de Denarium, na praça Joaquim Nabuco (conhecida como praça do garimpeiro), afirmou que passaria com um trator por cima das comunidades indígenas. Na TI Yanomami foram além de tratores, abriram estradas e permitiram que retroescavadeiras ampliassem as áreas de desmatamento em mais de 300% entre os anos de 2018 e 2022, sendo que cerca de 2.000 hectares foram desmatados no ano passado. Onde os senadores analisaram esses dados e seus impactos na vida dos indígenas?
Na conclusão do relatório o senador Hiran Gonçalves (PP/RR) cobra que a mineração seja vista com parcimônia e diferenciada do garimpo ilegal. O objetivo da comissão era a situação dos Yanomami, não a busca da regulamentação da extração mineral na terra indígena. Defende inclusive que os garimpeiros que queiram trabalhar em plantas mineradoras pudessem receber incentivos do Estado e serem formados. Em nenhum momento os representantes Yanomami que participaram das audiências fizeram essa defesa. A proposta saiu de onde? Ou os interesses dos financiadores do garimpo ilegal sobrepõem os interesses dos Yanomami? Acredito que sim, né Senador, pois conforme seu texto os indígenas não compõe o povo de Roraima.
Ironicamente, ao defender uma política indigenista estruturada nos direitos fundamentais dos indígenas, por meio do diálogo, aponta que devem ser desconsideradas as amarras promovidas pela burocracia estatal (FUNAI, IBAMA e Ministério dos Povos Indígenas) e organizações representativas dos indígenas. Nesta lida reacionária, o relator propõe a superação do ambiente de conflitos, por meio de uma cooperação entre indígenas e não indígenas. A cooperação proposta, pelo senador, deve preconizar a autorização de garimpo, mineração, obras pública e revisão de terras demarcadas propostas pelo PL 490/2007, defendido pelo partido do relator.
Hilariamente propõe o senador que é necessário que se busque estabelecer o vínculo do povo Yanomami com a terra, tomando como referência o plantio de milho transgênico, incentivado pelo oligarca Denarium, em algumas outras terras indígenas. Essa política não constitui segurança alimentar aos Yanomami, os caminhos a serem seguidos precisam ter como foco central, a voz das representações Yanomami. Não são os modelos colonizadores e integradores aos sistemas destruidores da coletividade que devem ser referenciados por nós.
Eu particularmente não esperava muito desta comissão, pois conheço a prática política dos integrantes de Roraima e de outros membros. Porém, fiquei perplexo com o relatório ter o descabimento de tentar transformar os Yanomami em criminosos, além de responsabilizá-los pela entrada de garimpeiros dentro do território. O mínimo de decência é necessário na vida pública. Essa esteve ausente na formulação do resultado final da comissão, faltou apenas pedir o indiciamento dos indígenas pelo processo de destruição ambiental, contaminação de mananciais e mortes de membros de suas comunidades. Esse relatório não deve ser aprovado, em nome da civilidade e do respeito aos povos indígenas.
DESMATAMENTO ZERO
A Europa é uma das regiões do mundo que enfrenta as grandes transformações impostas pelas mudanças climáticas. Após, o acordo de Paris, estabeleceu-se metas que estão sendo ratificadas em encontros anuais do meio ambiente, os quais buscam promover transformações em hábitos culturais de vida, especialmente no tocante ao sistema produtivo. Recentemente a Europa, por meio de seu parlamento, aprovou uma lei de tolerância zero ao desmatamento, prevendo multa de até 4% do faturamento para empresas que vendam café, carne bovina, soja, borracha e óleo de palma e tenham em sua cadeia produtiva relações com estruturas empresariais que promovam o desmatamento.
As empresas terão que comprovar que em sua cadeia produtiva não mantém relação com produtores de insumos que desmatem florestas, seja na Europa ou em outros lugares do mundo. Investidores com medo de suportar multas começam a pressionar os produtores para que apresentem informações claras sobre sua cadeia produtiva. A medida adotada pode afetar diretamente o Brasil e sua onda liberalizante, estruturada no congresso nacional que quer ampliar desmatamento, fronteira agrícola rumo a Amazônia e ocupação de territórios indígenas.
As principais exportações brasileiras para Europa destinam-se aos Países Baixos, Alemanha, Espanha, Itália e Bélgica. A soja, os farelos de soja e o café figuram entre os principais produtos exportados representando em conjunto 20,5%. Representando financeiramente um valor de U$ 52,4 milhões do total de produtos exportados no ano de 2021. As empresas brasileiras precisam abrir o olho, caso contrário, às consequências serão enormes com o caminho de destruição ambiental proposto por parte de nossos parlamentares.
CIDADÃO DE SEGUNDA CATEGORIA
A câmara dos deputados aprovou na noite de quarta-feira, em caráter de urgência o projeto de Lei 2720/2023 que tipifica crimes contra pessoas politicamente expostas (detentores de mandatos do executivo e legislativo, ocupantes de cargo no governo federal, estadual e municipal, membros da justiça, integrantes do ministério público, integrantes do tribunal de contas da União, presidentes e tesoureiros de partidos).
A proposta estabelece direitos especiais, por um período de 5 anos, após deixar de exercer a posição de politicamente expostas, ou seja, mesmo depois de cessado as responsabilidades os direitos estão garantidos. É crível construirmos um espaço de relações sociais, onde existam privilegiados pelo Estado em virtude de seu exercício funcional. O congresso nacional com sua representação reacionária caminha na direção de ampliar as desigualdades, promovendo agora a legalização dessa desigualdade. A proposta ainda protege familiares, estreitos colaboradores e pessoas jurídicas que os “endeusados” tiverem.
O projeto de lei aprovado possui duas especificidades de classe para proteção de pessoas “politicamente expostas”. A primeira prevista no artigo 3º considera crime qualquer exposição de pessoas com os vínculos apresentados acima que responderem a processos judiciais. Essa proposta vedará praticamente que a imprensa possa apontar e apresentar corruptos como acusados em processos de investigação. No limite da Lei terminará restringindo também a lei da ficha limpa, ao vedar exposição das pessoas impedidas de disputar cargos eletivos.
A segunda medida protetiva dos interesses destes segmentos privilegiados da sociedade propõe a proteção de seus nomes, de parentes e empresas no tocante a abertura de contas bancárias e acesso a crédito. Os quais praticamente, aprovada a Lei que vai ao Senado Federal, deixarão de ter qualquer pedido de empréstimo negado por instituições financeiras. Caso ocorra a vedação, a mesma deve ser encaminhada por escrito, caso contrário, os responsáveis poderão ter sua liberdade restringida de 2 a 4 anos e ainda pagarem multa.
Vivemos um momento no congresso nacional brasileiro muito difícil em virtude da luta de classes que se estabelece. Ocorre que a pouca representação de trabalhadores coloca em risco esse processo de luta, tendo em vista a hegemonia de interesses burgueses que se estabeleceram no legislativo. Essa correlação de forças coloca em risco princípios importantes da constituição, entre eles a manutenção de direitos do nosso povo. O enquadramento da diferença de tratamento, por cargos exercidos, demonstra que estamos longe de superar a cultura de privilégios ainda preponderante em nosso país.
Bom dia. Um forte abraço.
Fábio Almeida
Jornalista e Historiador
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