O congresso nacional representa interesses de uma aristocracia agrária e da burguesia nacional quando observamos a atuação e os votos da maioria dos Deputados Federais e Senadores da República. Compreender essa atuação parlamentar é fundamental para entender a urgência aprovada, no último dia 24/05/2023, do PL 490/2007 que em sua versão aprovada na CCJ, da Câmara dos Deputados, propõe regulamentar o artigo 231 da Constituição Federal de 1988, dispondo sobre reconhecimento, demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas.
A terra sempre foi um processo de ampla disputa no Brasil, uma das poucas democracias burguesas que não realizou reforma agrária fomos nós, Muito provável devido termos sido constituídos pela efetiva privatização da terra, com a adoção das capitanias hereditárias e posteriormente das sesmarias. Esse modelo de autodeclaração de posse e posterior reconhecimento pelo Império e depois pela República, transformou a terra em um bem de grande valor, sendo os indígenas expulsos de suas áreas ou assassinados, para garantir a ampliação da riqueza da oligarquia agrária. A mesma que tenta no congresso nacional fazer valer seus direitos, ao dificultar o reconhecimento de terras indígenas.
Antes de apresentar os principais pontos do PL 490/2007, que deve ir a votação amanhã no plenário da câmara dos deputados, é fundamental afirmar que o reconhecimento das terras indígenas é uma dívida nossa com os povos originários desta nação, os quais tiveram reconhecidos os direitos a terra na CF/1988, por meio de uma emenda popular articulada pela União das Nações Indígenas (UNI) que teve apoio de vastas parcelas da sociedade brasileira, bem como é falsa a premissa de que a demarcação de terras indígenas inibem a produção agrícola. Esses dois pontos que apresento consistem na base da minha posição contra o projeto de lei, imposto por Lira e sua bancada de direita e extrema direita.
O PL 490 é apresentado pelo Deputado Federal Homero Pereira, integrante na época do PR/MT – hoje esse partido é o PL – que propõe, em 2007, a alteração da Lei 6.001/1973 ao definir que as demarcações passassem a ser aprovadas pelo congresso nacional, não mais por ato discricionário do presidente da República. A proposta atual, aprovada na comissão de constituição e justiça da câmara dos deputados, em 2021, relatada pelo Deputado Federal Arthur Maia (DEM/BA) ampliou a proposição original, após o apensamento de inúmeros outros projetos que tramitavam na casa legislativa, buscando restringir a demarcação de terras indígenas e ampliar o uso desssas terras por empresas.
O artigo 4º, do PL 490, exige que o reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, atendam simultaneamente 4 itens para ser considerada apta a demarcação, sendo: I - por eles habitadas em caráter permanente; II - utilizadas para suas atividades produtivas; III - imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; IV - necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. O não atendimento com critérios objetivos – os quais ninguém compreende quais são – impedirá a continuidade dos processos não concluídos ate'a aprovação da Lei ou a abertura de novos processos.
Um dos principais pontos consiste no estabelecimento do marco temporal para que indígenas possam ter direito ao reconhecimento de suas terras. O item I estabelece a necessidade de habitação permanente, porém, essa permanência é estabelecida por meio da existência física dos indígenas sobre as áreas na data de 05/10/1988 – data da promulgação da CF. O parágrafo 2º, do artigo 4º, prever que a ausência da comunidade indígena na área pretendida, neste marco temporal proposto, descaracteriza o cumprimento do item I, ou seja, impede a continuidade do processo de reconhecimento da terra. A exceção ocorreria apenas caso haja esbulho comprovado, seja por conflitos ou processos judiciais. A medida nega o direito ancestral e consuetudinário.
Não satisfeito com a redação do parágrafo 2º, o legislador reforça o limitador temporal no parágrafo 4º, ao estabelecer que a cessação da posse da comunidade indígena, antes de 05/10/1988, independente da causa – pode ter sido as balas dos pistoleiros ou da força de segurança do Estado – inviabiliza o reconhecimento do inciso I, do artigo 4º. Essa portanto é a principal batalha no texto que teve a urgência aprovada pela câmara dos deputados, precisando agora ser vencido nas ruas.
Aprovada essa proposição não teremos mais terras indígenas demarcadas no Brasil, deixando o Estado de reconhecer um direito originário a posse da terra aos indígenas. Precisamos como sociedade nos levantar contra o grave ataque de classe que parcelas da burguesia nacional querem impor aos indígenas, tomando-lhes mais uma vez o direito ao território. Onde, tivemos terras demarcadas a população indígena cresce exponencialmente, o exemplo maior são os Waimiri-Atroari, localizados na divisa de Roraima e Amazonas foram quase dizimados pelo exército brasileiro quando da abertura da BR 174 e hoje aumentam o número de pessoas. Na TI Raposa Serra do Sol a população indígena já chega a mais de 60 mil pessoas vivendo em comunidades.
Porém, não é apenas esse ataque desferido, apesar de ser o principal, pois a negação do direito a terra é forçar a comunidade indígena rumo ao desaparecimento, nas periferias das grandes cidades brasileiras, ou em assentamentos da reforma agrária. No artigo 9º o legislador vincula a indenização das áreas afetadas pelas demarcações, a conclusão da demarcação, garantindo aos ocupantes o uso efetivo das áreas que integram o território definido. Essa medida potencializará os processos conflituosos, expondo brasileiros indígenas e não indígenas a derramamento de sangue, lógico que mais sangue indígena é derramado neste processo de violência na disputa pela terra.
O cúmulo da proposta consiste quando o legislador aprovou que o artigo 148, do código civil, que determina suspeição e impedimentos deve ser observado contra antropólogos, peritos e outros profissionais especializados, isso se encontra no artigo 10 do PL 490. Isso na realidade busca estabelecer que funcionários da Funai e do Governo em geral não poderão realizar os estudos necessários ao estabelecimento de terras indígenas. Muito menos que indígenas possam ser nomeados pelo governo para o processo de demarcação de terras.
O artigo 13, em sua afronta contra as comunidades indígenas, especialmente os territórios demarcados nas décadas de 1960 a 1990, realizada em ilhas de vida – ante a destruição da soja e do gado, ou mesmo a especulação dos latifúndios improdutivos espalhados pelo Brasil – não poderão sofrer processos de ampliação por parte do governo federal. A única forma de ampliação prevista na Lei consiste apenas nas terras adquiridas com base na legislação civil, ou seja, a compra de terras por indígenas, conforme estabelece o artigo 18.
A redação do artigo 15 expõe as atuais terras já demarcadas a processos de revisão, ao determinar que são nulas todas as demarcações que não atendam aos preceitos previstos no PL 490, no artigo 4º, especificamente. Essa proposição possibilitará que posamos ter revisões de terras que haviam sido ocupadas irreguladamente por fazendeiros, a exemplo da TI Raposa Serra do Sol. No campo das gestão territorial a proposição legislativa prever no parágrafo 4º, do artigo 16 que a União poderá tomar as terras indígenas demarcadas e destiná-las para outros fins, caso haja alterações dos traços culturais dos indígenas. O que significa isso?
Como apresentei no início da coluna a proposição também busca regular o uso e a gestão da terra indígena, ampliando os ataques, agora não contra a luta pela posse da terra, mais aos territórios já demarcados. O artigo 20 exclui do conceito de usufruto exclusivo da terra, estabelecido pelo artigo 231 da CF, os seguintes pontos: I - o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre autorização do Congresso Nacional; II - a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que dependerão de autorização do Congresso Nacional, assegurando-lhes a participação nos resultados da lavra, na forma da lei; III - a garimpagem nem a faiscação, devendo se for o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira; IV - as áreas cuja ocupação atenda a relevante interesse público da União.
Esse artigo estabelece que empresas e pessoas possam utilizar as terras demarcadas, além do exclusivo usufruto indígena apontado na constituição, sem que se estabeleça o efetivo processo de consulta, previsto na CF e na convenção OIT 169. Na prática a proposta regulamenta o garimpo e a mineração em terra indígena, bem como qualquer interesse da União. Atingindo claramente as premissas de etnodesenvolvimento defendido pelas comunidades indígenas, bem como as premissas da proteção ambiental.
O artigo 21 confronta diretamente a constituição federal ao estabelecer que os indígenas perdem seu usufruto quando for definido uma política de defesa ou soberania nacional. As políticas de ampliação de bases militares, exploração energética, expansão de malha viária estratégica, reguardo riquezas estratégicas, bem como a atuação das forças armadas e polícia federal, além da implantação de equipamentos públicos de comunicação, locomoção e prédios poderão ser implantados sem consulta aos indígenas e aos órgãos responsáveis por sua proteção.
O artigo 24 retira da Funai a responsabilidade da gestão dos territórios indígenas sobrepostos as unidades de conservação ambiental, caracterizando claramente um esvaziamento dos poderes do órgão gestor da política indigenista, promovendo descontinuidades, ou mesmo, conflitos no processo de gestão dos territórios indígenas demarcados, ampliando responsabilidades ao ICMbio e vedando atuação dos servidores da Funai. A proposta é contraproducente e dificulta o processo de gestão do território, ampliando assim as vulnerabilidades.
O artigo 27, consiste em um dos principais desejos dos grandes fazendeiros, ao regulamentar o uso da terra por não indígenas abrindo novamente os processos conflituosos nos territórios. O inciso II chega ao escárnio de estabelecer que a posse de áreas usadas por não indígenas fazendeiros continuará dos indígenas, porém o direito de ir e vir, acesso a água e a outros bens naturais do território não está garantido.
O artigo 29 foca nos indígenas isolados, estabelecendo regramentos que possibilitam o contato pelo Estado, mesmo com estes cidadãos e cidadãs não querendo nenhum contato com a sociedade envolvente, muitas vezes nem com os outros indígenas que moram por perto e já possuem contatos com nossos padrões culturais. O projeto inteiro é uma afronta a política indigenista que permitiu, mesmo com os entraves do Estado e as balas dos fazendeiros que a população indígena invertesse a lógica de diminuição e voltasse a crescer.
As disposições finais da proposta, em seu artigo 30, isenta de tributos, taxa ou contribuições de qualquer natureza a pesquisa e lavra minerária e a exploração de recursos hídricos autorizadas pelo congresso nacional da cobrança de qualquer tributo. O artigo 31 retira as terras indígenas da proibição do cultivo de organismos geneticamente modificados, ao alterar o artigo 1º da Lei 11.460/2007. No artigo 32 inclui as áreas destinadas às comunidades indígenas como de interesse social.
Esse é o projeto de lei 490/2007 relatado pelo deputado que preside a CPI dos atos golpistas de dezembro de 2022 e janeiro de 2023. No entanto os ataques não terminam por aí, pois alguns deputados conseguiram apensar seus projetos a proposta original, ampliando a política de destruição promovida pelo congresso contra os povos indígenas. Todas as proposições apresentadas abaixo foram feitas em 2023 e elaboradas por aliados de Bolsonaro e parlamentares anti-indígena.
O deputado federal Rodolfo Nogueira (PL/MS) acrescenta, por meio do PL 1288/2023, que as terras em processo de demarcação ocupadas por um ou mais integrantes da comunidade indígena, antes da conclusão do processo imporá a suspensão por 2 anos do trâmite, independente do estágio que se encontre. Já o PL 1740/2023, da deputada federal Carolini de Toni (PL/SC), retoma a proposta de que a homologação de terras indígenas ocorra apenas após a votação dos relatórios pelo congresso nacional. Já o deputado Chrisóstomo (PL/RO) propôs o apensamento do PL 824/2023 que entre outras coisas regulamenta a exploração de madeiras dentro das terras indígenas.
O congresso nacional, os empresários e fazendeiros colocam em risco a vida dos povos indígenas com uma possível aprovação do PL 490/2007. Em nenhum momento as comunidades foram efetivamente ouvidas, quanto a perda de autonomia em seu territórios, bem como aos empecilhos criados na demarcação de terras indígenas, inclusive nas possibilidades de revisão de terras já homologadas. Pelo contrário, em 2019 e 2021, os indígenas sofreram com agressões da polícia quando da realização do acampamento Terra Livre, o qual corretamente pede o arquivamento imediato da proposta do agronegócio, madeireiros e grileiros de terra contra os povos indígenas.
ARAPONGAGEM
A agência pública utilizando a lei de acesso a informação conseguiu comprovar que a ABIN realizou monitoramento de brasileiros e brasileiras. Em 2021, o atual deputado federal Alexandre Ramagem, ex-diretor da ABIN, negou que o órgão havia monitorado pessoas. Ocorre que no ano de 2020 lideranças de caminhoneiros foram monitoradas pelo governo que avaliava ameaças. Uma das informações era a ligação do líder caminhoneiro com partidos da oposição. As informações disponibilizadas comprovam o uso do Estado, no governo Bolsonaro, no monitoramento político de pessoas. Esse crime de estado alcançou mais quem?
GRILAGEM
A comunidade quilombola Kalunga localizada no cerrado de Goiás, possui 260 mil hectares, destes apenas 36 mil foram reconhecidos e registrados em nome dos quilombolas. Ocorre que fazendeiros acharam-se no direito de com capangas imporem a ampliação de suas cercas, impedindo que os membros da comunidade quilombola tivessem acesso a vários locais de sua terra. Felizmente os oito mil quilombolas que vivem em 39 comunidades distribuídas entre os municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre de Goiás, obtiveram da justiça uma ação favorável a reintegração de posse em favor do quilombo. Kalunga é o maior quilombo do Brasil e fica dentro do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Será que os representantes da extrema direita irão investigar essas grilagens de terra protagonizadas por fazendeiros?
TRABALHO ESCRAVO
O presidente da CPI do MST na câmara federal, coronel Zucco (Republicanos/RS), a cada dia demonstra sua impossibilidade ética, política e institucional de presidir os trabalhos propostos pela investigação. A cada semana surge uma nova relação deste deputado com investigações ou relações com criminosos. Dignidade seria o mínimo a se cobrar deste cidadão, mas não é possível cobrar algo de humanidade a um representante da extrema direita brasileira. A mais nova denúncia vincula o deputado com um financiador de campanha que responde a um processo por uso de mão de obra escrava em seus empreendimentos. Esse é o bolsonarismo, forja-se na opressão dos trabalhadores e na bajulação dos ricos.
NOVO MARCO FISCAL
A burguesia encontra-se alvoroçada com as últimas votações no congresso nacional. O arcabouço fiscal do governo mantém seus ganhos especulativos, enquanto temos milhões e milhões de brasileiros e brasileiras vivendo na pobreza. A aprovação da urgência do PL 490/2007 por uma ampla margem de votos, possibilitou que esticassem um pouco mais a corda com o governo federal. A burguesia de olho em mais grana para financiar a especulação financeira e a oposição bolsonarista buscando diminuir capacidade de investimentos públicos do governo federal uniram-se para aprovar uma emenda de plenário no Novo Marco Fiscal. Alterando a banda de investimento que vai de 0,6% até 2,5% na proposta do governo, para 0,6% para 2,0%, uma perca de 5% que representa bilhões de reais que saíram da educação ou saúde, ou mesmo do Fundeb para financiar banqueiros. A banda de aplicação de recursos públicos que já era ruim, poderá ficar pior, inviabilizando políticas como o Fundeb, a composição salarial da enfermagem e o bolsa família. Se a alteração for aceita a margem do governo investir cai muito, com essa redução proposta, se aprovada as condições pioram e muito para o governo, principalmente na estreita capacidade de geração de emprego, um mantra defendido por Lula, porém, parece que negociado por sua equipe econômica
Bom dia com alegria.
Fábio Almeida
Jornalista e Historiador.
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