Uiramutã é o pior município do Brasil?
- Fabio Almeida
- há 12 minutos
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Durante a semana passada foi divulgada uma pesquisa do Internacional Social Progress Imperative (SPI), organização estadunidense, que consiste na mineração de dados, disponíveis na internet, os quais consolidam o índice de progresso social (IPS), a partir desse indicador mensurado por meio de 57 critérios de medição, divididos nos seguintes macroprocessos: necessidades humanas básicas; fundamentos do bem-estar; e oportunidades. A partir dessas referências apontou-se que o Uiramutã, localizado a 313 Km de Boa Vista, foi apontado pelo segundo ano como o pior município do Brasil.
Essa referência me incomodou bastante, em virtude de compreender que a massificação de critérios igualitários para avaliação de contextos sociais e geográficos distintos reproduzem distorções seríssimas em uma análise. Por exemplo, o município do Uiramutã, criado pela Lei 098, de 17 de outubro de 1995, consistiu em uma ação do Estado, em aliança com o Exército, para conter a demarcação da Raposa Serra do Sol. Isso mesmo, a cidade do Uiramutã, encontra-se encravada na cordilheira do Parima, entre a Serra do Sol e a planície do Cotingo. Sendo que 80% do município encontra-se em elevações que variam entre 0 e 2.810 metro de altitude, com estradas sem asfaltamento que impõe cerce de 8h no percurso entre Boa Vista e Uiramutã, para carros grandes, os pequenos vão, mas podem ficar pelo caminho.
Esse núcleo de resistência aos interesses da aristocracia roraimense, transforma a gestão municipal, especialmente após a assunção de indígenas ao posto de gestão a sérias restrições políticas a investimentos públicos na localidade, isso por exemplo, pode ser mensurado por meio da disponibilidade de emendas parlamentares. Enfim, analisar a situação socioeconômica do Uiramutã sem observar suas especificidades e impor uma visão distorcida da realidade.
Localizado no coração da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o município possui 96,60% de seus habitantes auto classificados como indígenas. Ou seja, 13.283 (IBGE 2024) habitantes são Macuxi, Taurepang, Ingaricó, Patamona, Sanomá ou Wapichama, os demais habitantes que somam 2.288 são não-indígenas. Essa estratificação étnica não é fundamento para se mensurar o que é melhor ou pior nesse país, no entanto, como adotar critérios urbanos, estruturados em uma sociedade capitalista, para mensurar indicadores de progresso social numa sociedade que se organiza a partir de outras perspectivas geosocioespaciais. Desse total de indígenas - segundo dados da SESAI de 2023 o município possui 16,7 mil indígenas aldeados - a maioria vivem em 109 comunidades, distribuídas em 8.066 km², sendo que 3,4% da população mora em área urbana. Já a cidade que iremos realizar comparações, São Paulo, possui 1.521 km², sendo 99,7% da população urbana. Não observar esse indicador na análise consiste em um grave erro metodológico.
Isto, em minha opinião promove distorções que não refletem indicadores de qualidade de vida. Na prática reproduz internamente, em um Estado com uma maioria social e política anti-indígena, a percepção de que os indígenas são incapazes de promover felicidade ou mesmo administrar seus destinos. O que é revoltante! Desta forma, busquei a partir dos próprios critérios da pesquisa comparar nosso Uiramutã com a cidade de São Paulo, respectivamente nas posições 5.570 e 25. São Paulo possui um PIB de R$3,5 trilhões e Uiramutã de R$ 143,9 milhões. O coeficiente de GINI que mensura os níveis de desigualdades são na cidade do Sudeste 0,50, enquanto é de 0,78 na cidade do Nordeste roraimense. Ou seja, entre a riqueza produzida e sua distribuição, a concentração de renda é maior no Uiramutã do que em São Paulo.
Quando analisamos as o macroprocesso NECESSIDADES HUMANAS BÁSICAS, propostas na pesquisa, vemos que os dois municípios apresentam o mesmo indicador RELATIVAMENTE NEUTRO para: hospitalizações sensíveis a atenção primária. Compreendendo que a rede de assistência do Uiramutã distribui-se em 110 localidades, incluindo a sede urbana, enquanto toda a população de São Paulo encontra-se em apenas uma localidade, permeada por asfalto, enquanto no Uiramutã o veículo tem que romper estradas encravadas na serra do Parima. Não observar essas especificidades promovem olhares equivocados, pois o acesso a atenção primária no Uiramutã é mais dificultoso que em São Paulo, essa distorção deveria ser observada como variante na análise. Igualam-se também nos indicadores abastecimento de água via rede de distribuição, índice de perdas água, domicílios com piso adequado, assassinato de jovens e mulheres.
Neste indicador temos ainda duas categorias a serem observadas. Quanto ao conceito relativamente fraco o Uiramutã é pior que São Paulo nos critérios: mortalidade ajustada por condições sensíveis à atenção primária; mortalidade infantil até 5 anos; esgotamento sanitário; índice de abastecimento de água; domicílios com parede adequada e homicídios. Antes de continuar é fundamental entender que no índice de abastecimento de água deve-se levar em consideração que a integralidade dos poços que abastecem as comunidades indígenas não é registrada no SISÁgua, em virtude de os critérios de análise da qualidade da água serem pensados para zona urbana, impossíveis de serem acompanhados na zona rural, assim o poço existe, possui água de boa qualidade, mas não se encontra passíveis de mineração de dados.
No entanto, Uiramutã possui indicadores neste tópico melhor que São Paulo em: subnutrição; domicílios com coleta adequada de resíduos e mortes por acidente de trânsito. Os dois municípios também se igualam quando mensuradas situações RELATIVAMENTE FRACAS quando analisados indicadores de: cobertura vacinal; e domicílios com iluminação elétrica adequada. Ao observar os indicadores das necessidades Humanas Básicas percebemos que a distribuição espacial das comunidades que variam de populações 28 a 609 pessoas, com uma média populacional de 154 indígenas por comunidade, não foram observadas. Como esgotamento sanitário pode ser mensurado para classificação do Uiramutã? Opa! Quase esqueço. O Uiramutã possui apenas uma cidade em que toda sua população é avaliada dentro dela, em seus mais de oito mil quilômetros quadrados.
O macroprocesso Fundamentos do Bem-Estar divide-se em: Acesso ao conhecimento Básico; Acesso a Informação e Saúde; e Bem-estar. Os indicadores RELATIVAMENTE NEUTROS nos dois municípios são: abandono do ensino fundamental; abandono do ensino médio; evasão do ensino médio; IDEB do ensino fundamental; reprovação escolar no ensino médio; consumo de alimentos ultraprocesados; expectativa de vida; mortalidade por doenças crônicas não transmissíveis; e áreas verdes urbanas. Uiramutã aparece numa situação pior que São Paulo em relação aos indicadores: distorção idade-série no ensino médio; densidade de telefonia móvel; qualidade de internet móvel; mortalidade entre 15 e 50 anos; suicídio; emissões de CO² por habitante, focos de calor; e índice de vulnerabilidade climática dos municípios. Já os indicadores RELATIVAMENTE FORTES em que Uiramutã supera São Paulo são: cobertura de internet móvel; densidade de internet banda larga fixa; e obesidade.
Como vemos os critérios de análise são questionáveis como a emissão de CO² no Uiramutã é pior que em São Paulo? Ou mesmo, como a cobertura de internet móvel é melhor no Uiramutã? Enfim, quando estabelecemos indicadores de forma bruta, sem a interferências de variáveis chegamos a situações iguais a essa que apontam que a qualidade do ar no Uiramutã é pior que a qualidade do ar em São Paulo. Isso, demonstra a fragilidade do estudo no processo de qualificação da condição de vida das pessoas.
Por último, a pesquisa aponta o macroprocesso de OPORTUNIDADES que se divide em: direitos individuais; liberdades individuais e de escolha; inclusão social; acesso à educação superior. Os INDICADORES NEUTROS nos dois municípios são: índice de atendimento à demanda da justiça; taxa de congestionamento líquido de processos; paridade de negros na câmara municipal; violência contra indígenas. O município do Uiramutã apresenta indicadores piores que São Paulo nos quesitos: acesso a programas de direitos humanos; existência de ações para direito de minorias; acesso à cultura, lazer e esporte; gravidez na adolescência; índice de vulnerabilidade das famílias do CADÚnico; praças e parques em áreas urbanas; paridade de gênero na Câmara Municipal; violência contra mulheres; violência contra negros; empregados com ensino superior; mulheres empregadas com ensino superior; nota mediana do ENEM. Quanto aos indicadores em que Uiramutã é melhor que São Paulo são: resposta a processos familiares; e famílias em situação de rua.
A área urbana da cidade de São Paulo é 949,611 km², possuindo 6.500 praças, para atender uma média de 1.760 pessoas por praça. No Uiramutã a área urbana é de 24,7 Km² e possui uma praça para atender 2.288 pessoas. Neste indicador é fundamental afirmar que todas as pessoas do Uiramutã possuem acesso a praça, mas não é possível afirmar que a 1.760 pessoas/praça em São Paulo tenham acesso ao equipamento público, em virtude de muitas vezes encontra-se distante das residências das pessoas. Quando olhamos o acesso ao ensino superior temos que observar a existência de apenas dois polos que funcionam precariamente na sede municipal, sem políticas de amparo aos estudantes que moram nas comunidades indígenas, ao contrário de São Paulo que possui em sua área urbana 146 instituições de ensino superior, sem a necessidade de amparo de moradia aos seus moradores. Portanto, a observação dessas variáveis são fundamentais para credibilidade de uma pesquisa.
Não busco, neste artigo, tentar reverter todas as dificuldades e omissões do poder público no município do Uiramutã. Porém, naquela localidade não é difícil encontrarmos jovens que falem 3 idiomas. Mesmo assim, temos o pior indicador de analfabetismo de nosso Estado naquela localidade, situação que exige uma ampla ação do Estado no combate ao analfabetismo. A pesquisa demonstra por meio da distorção idade/série, no ensino médio a dificuldade dos jovens das comunidades acessarem essa etapa do ensino, centralizada na sede municipal. Aqui, trazemos um tema fundamental em minha opinião, não é possível que a educação básica nas comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas continuem a ser de responsabilidade de municípios e estados. A responsabilidade deve ser da União que pode firmar cooperação técnica e /ou financeira com outros Entes da federação para desenvolvimento do ensino básico.
Por fim, a imprensa roraimense e brasileira estampou o Uiramutã como a pior cidade de se viver. Na filosofia a expressão pior depende do contexto em que a avaliação é feita e dos critérios utilizados, estando sua expressão diretamente vinculada a conceitos morais, éticos e estéticos que projetam a intensificação do “mal” que causa prejuízo, sofrimento ou desvantagem. Auferir como princípio de progresso social conceitos padronizados de cidade que possuem como premissa um padrão estadunidense, desconstrói a diversidade existente nesse país, muitas vezes ter ou não uma rua/estrada asfaltada é fundamental para garantir o direito de ir e vir, mas não para permear a determinação de felicidade de uma pessoa ou de uma família numa determinada cidade. Esse determinismo sobre o Uiramutã assusta, pois vemos uma reprodução automática de uma informação, sem que os critérios da classificação sejam esclarecidos nas matérias jornalísticas, as quais sofrem de uma grave crise, fruto da posição do STF que deixou de exigir diploma para exercício da profissão de jornalista. Ou seja, o Uiramutã deveria ser equiparado a outros municípios que possuem população indígena acima de 90% e com apenas uma localidade urbanizada, não a cidades que apresentem o mesmo padrão de PIB.
Bom dia, com alegria
Fábio Almeida
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